15 de out. de 2009

LeiA-me : ENsaiO

AS MEMÓRIAS EM VALSA COM BASHIR.


Flaviano Menezes da Costa


A primeira coisa que nos perguntamos ao ver as cenas iniciais de Valsa com Bashir (em hebraico ואלס עם באשיר - Vals Im Bashir, 2008) do israelense Ari Folman, é; - Estamos diante de um filme, de uma animação ou de um filme tratado com técnicas de animação? A segunda será; - Que gênero, afinal, pertence tal produção?

É uma animação, dirá, delirante e talentosamente, o diretor quando mostrar várias seqüências do pesadelo que foi a Guerra do Líbano no começo dos anos 80. Deste modo, caminharemos para a elucidação do segundo questionamento, e concluiremos que é um filme de guerra, ou melhor, um desenho animado libanês sobre a guerra. Mesmo assim, estaremos apenas definindo rasteiramente tal obra.

Em num bar barulhento, um homem tenta explicar a um amigo seus insistentes pesadelos com uma matilha de cães furiosos que o persegue por toda a cidade. Cães que, na verdade, aquele teve que trucidar quando invadiu, com sua tropa, um vilarejo. Vinte e seis cães que o persegue há anos.

Não é difícil deduzir que aqueles animais ferozes são, na verdade, seus inaceitáveis “fantasmas de guerra”, apesar do mesmo não admitir.

- De que lugar vem os sonhos? – indaga o angustiado homem.

- Eu só sou um diretor de cinema! – responde o amigo.

- E os filmes não podem ser terapêuticos. Você já lidou com vários assuntos nos seus filmes, não?

- Mas nada comparado a isso!

O amigo ouvinte é o próprio diretor; Ari Folman, que é designado a filmar tal metáfora. Porém, o cineasta não consegue se lembrar de quase nada de sua experiência no exército de Israel naquela primeira e terrível guerra no Líbano. E assim, incomodado com tal amnésia, Folman tenta buscar respostas com os seus amigos de combate que se espalharam mundo afora. Temos então, um pseudo-documentário (ou um documentário em animação), já que o próprio Folman, aos 19 anos, participou da Guerra do Líbano em 1982, e realmente desenvolveu um bloqueio em relação aqueles tortuosos dias.

O diretor sai, então, em busca de respostas para tentar reconstruir a sua memória, por mais que essa pretensa intenção possa trazer-lhe mais traumas emocionais do que imagina. Imaginação, memória, delírios bélicos, esperanças destruídas tudo é aproveitado pelo diretor para recuperar uma imagem que talvez ele tanto teime; a de um soldado perdido na linha de fogo.

Já naquela noite ele consegue ter sua primeira visão do início do massacre nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, nos oeste de Beirute, Líbano; homens nus saindo do mar indo de encontro a uma cidade em destroços e uma população desesperada. Ele estava lá, e inconsequentemente atirava para todos os lados.

O primeiro a ser visitado é Oris Sivan, companheiro de pelotão e que agora é terapeuta. O cineasta explica ao amigo que, até então, não se preocupava com tais lembranças, foram os pesadelos com os cães perseguidores do amigo Boats que o estimulou a uma procura psicológica por tais acontecimentos ocorridos, apesar dos dois não terem servido no mesmo front.

A explicação do amigo é simples e elucidativa. Sendo seres propensos a cometer erros e criar realidades, nós podemos nos lembrar de algo que na realidade não existiu. Como quando alguém tenta implantar uma memória falsa em outra pessoa através daquilo que chamamos de “indução de imagens.” Este exemplifica;

- Um grupo de pessoas viu dez imagens variadas da infância. Nove eram mesmo da infância deles, e uma era falsa: no retrato, elas estavam em uma feira (parque) que nunca haviam visitado. Oitenta por cento se reconheceram, eles acharam a foto verdadeira. Vinte por cento não conseguiram se lembrar. Os pesquisadores perguntaram novamente. Na segunda vez os outros disseram que se lembravam da imagem; - Foi um dia maravilhoso no parque com meus pais! – confirmaram.

A pesquisa descrita no filme serve para ratificar o que alguns filósofos, psicólogos e estudiosos da mente já sabiam; a memória é dinâmica, ela é viva. Porém, assim como ela pode nos levar para onde precisamos ir (ou precisamos estar), ingenuamente, se faltar alguns detalhes, ela preencherá tais lacunas com coisas que nunca aconteceram, ou como na experiência acima nos oferecerá uma experiência totalmente fabricada por outros.

Até este momento poderíamos nos questionar sobre a real necessidade do diretor de não ter optado por um documentário convencional, já que, logo após esta conversa o diretor viaja novamente para outra cidade com a intenção de entrevistar informalmente outro amigo. Mas o que percebemos é que, o diretor não tem a intenção de criar uma atmosfera excessivamente crua (e indigesta), caso fossem expostas entrevistas reais interligadas com cenas de guerra, ou glamourizar tal episódio, filmando atores encharcados com molho de tomate. Para Folman, tudo que envolve a guerra assume um sentindo sombrio, inusitado, lúdico e desesperador, principalmente quando este recorda uma viagem em um navio que o levaria a um novo combate e este é bombardeado. A impactante cena é abrandada por outra na qual um jovem soldado consegue escapar agarrado no contorno nu de uma Afrodite do mar. Tal metáfora perderia metade do seu encanto se notássemos algum efeito técnico.

O tempo no desenho também favorece a pausa e a reflexão. Ao conversar com os amigos Ronny Dayag e Shamuel Frenkel, ouve do primeiro o lamento de ter visto muitos amigos mortos e o sentimento de culpa de não ter sido preparado para tal ataque e tudo o que ele queria realmente, confessa; - Era esquecer o passado! Do segundo escuta detalhes de quando a tropa (na qual Folman também participava) fuzilou numa floresta um garoto que atirava contra um tanque. Reproduzida como uma lenta sinfonia, a cena se torna mais expressiva, como se o autor esperasse que o expectador tivesse tempo de refletir sobre cada ato, e, sobretudo, o seu desfecho. Ao final da história, Folman se pergunta: - Será possível que eu não me lembre de um acontecimento tão traumático?

As respostas talvez estejam com a professora e especialista em pós-trauma Zamaya Solomon, esta aproveita a conversa com o cineasta para contar outra estória, exemplificando desta vez os “eventos dissociativos”, isto é, quando uma pessoa vive uma situação e se sente por fora dela. Descreve a especialista:

- Um jovem soldado conseguia ver a guerra do lado de fora, como um mero expectador, pois era também fotógrafo. Olhava a guerra através da lente de uma câmara fotográfica. Entretanto, quando a máquina foi quebrada, destruiu-se também a câmera imaginária que o jovem criara para ver a guerra como um filme. O que resultou em uma avalanche de traumas.

Em sua obra Cinema, a imagem-movimento, o filósofo Gilles Deleuze relembra a riqueza da descoberta bergsoniana de uma imagem-movimento, ou mais profundamente de uma imagem-tempo, isto é, não podemos mais tentar “opor o movimento como realidade física no mundo exterior à imagem como realidade psíquica na consciência”. Para Deleuze, o cinema será, sobretudo, uma arte em que o espaço criado (ou representado) servirá como porta aberta para a análise das complexas afinidades entre passado e presente, memória e acontecimento.

As cenas criadas pelo artista da sétima arte criam uma consciência que se define não somente pelos movimentos que são capazes de captar (ou criar, no caso das animações), mas pelas relações mentais e psicológicas nas quais é capaz de estabelecer. A valsa que dá nome ao título é um bom exemplo disso. Ocorre quando o cineasta lembra-se do amigo disparando para todos os lados, num momento de total delírio bélico, como uma estranha dança cercada de prédios destruídos e pôsteres do recém-assassinado presidente Bashir Gemayer por todos os lados. O tempo, assim como as lembranças torna-se deformada, pois tudo tem um ar de alucinação, mas também menos abstrata do que gostaríamos de imaginar.

Cada sociedade define quais sofrimentos, alegrias, transtornos, heróis, algozes, traumas e vitórias vão corresponder as suas lembranças históricas, assim também cada pessoa define as suas recordações. Ao término das entrevistas, enfim, o diretor consegue se lembrar de um momento da qual qualquer ser humano pediria para esquecer. E o expectador é convidado a ver as únicas cenas “reais” da obra.

Em tempos, Gemayel Bashir (1947-1982) foi um político libanês e influente líder da etnia cristã maronita no seu país. Em agosto de 1982, foi eleito presidente do Líbano, sendo assassinado poucas semanas depois. A morte de Bashir causou intensos conflitos entre os cristãos do país, e posteriores colisões com a população árabe, que culminaram em massacres nos campos de Sabra e Shatila, onde seguidores do líder morto assassinaram refugiados palestinos.


REFERENCIA

DELEUZE, Giles. Cinema, a imagem-movimento. Tradução: Stella Serra. São Paulo; Editora Brasiliense S/A, 1983.

Valsa com Bashir. Título Original: Waltz with Bashir. Origem: Israel / Alemanha / França / Estados Unidos, 2008. Direção: Ari Folman. Roteiro: Ari Folman. Produção: Ari Folman, Serge Lalou, Gerhard Meixner, Yael Nahlieli e Roman Paul. DVD. Tempo de Duração: 90 min. Ano de Lançamento: 2008.

*ensaio apresentado a discuplina de Estética - UFMA

4 de out. de 2009

Cartazes - Apostas ianques e nacionais







Salve Geral, filme de Sérgio Rezende (Guerra de Canudos e O homem da capa preta) e inspirado nos ataques de uma facção criminosa a cidade de São Paulo em 2006, foi o filme brasileiro escolhido para disputar um indicação ao Oscar 2010. Vamos lembrar: Cidade de Deus disputando diretor no Oscar e Tropa de Elite ganhando um Urso de Ouro em Berlim. É, podemos torcer.

3 de out. de 2009

Uma frase : Bertolt Brecht ( teatrólogo)

Poeme-se


Escrever no mundo.

F.M.



Escrevo, e ninguém tem nada com isso!

Mas gostaria que todos lessem.


Escrevo porque há muito espaço,

mas pouco tempo.

Escrevo porque, há muito tempo,

peço espaço.


Escrevo para clarear,

confundir,

reagir.


Para não falar

Mas sentir e motivar.

Tornar tudo inverossímil e avaliar.


Escrevo na noite silenciosa,

sob uma luz ociosa,

numa folha sem pautas,

ansiosa.


Por vezes, linhas putas,

devassas,

só passado.


Outras, acanhadas,

precipitadas,

utópicas.

Escrevo distraidamente,

inconscientemente,

rente, na frente,

como arrotos.


Às vezes, frases disfarçadas,

dissimuladas.

Palavras-deslizantes,

todas cúmplices.


Outras, orações de súplica,

envergonhadas.

Sujeito-oculto,

todo errante.


Escrevo para criar força, identidade, emoção.

Alma a escrever, corpo a decifrar.

Tudo para ser, para entender.

Escrevo como missão.